As normas constitucionais,
quanto à eficácia, podem ser classificadas, segundo José Afonso da Silva em: a)
normas constitucionais de eficácia plena; b) normas constitucionais de eficácia
contida; e c) normas constitucionais de eficácia limitada. Sabido é que as
últimas exigem, para produzir efeitos naturais, diferentemente das demais
normas acima citadas, complementação por norma infraconstitucional.
Se a feitura de uma norma
infraconstitucional, exigida para dar efetividade a uma norma constitucional de
eficácia limitada, der-se por processo legislativo desencadeado pelo Poder
Legislativo, apesar de ser reservada à iniciativa do presidente da República,
advindo sanção deste, ainda assim subsistirá a inconstitucionalidade formal?
A hierarquia
constitucional, que garante à Constituição Federal o status de paradigma do
ordenamento jurídico, concretiza-se por meio de vários mecanismos, dentre eles
o respeito ao processo legislativo previsto em seu texto. A doutrina
normalmente reconhece ser o processo de criação das espécies normativas
estruturado em fases, quais sejam: iniciativa, discussão, votação, sanção,
promulgação e publicação. Tratando especificamente da primeira fase, sabe-se
que ela, segundo doutrina de Alexandre de Moraes (2010), representa “a
faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão para apresentar projetos de
lei ao Legislativo, podendo ser parlamentar ou extraparlamentar e concorrente
ou exclusiva”. Uma vez inobservado o processo legislativo adequado, pode-se
desencadear o ritual jurídico próprio para o controle de constitucionalidade
com base no vício de iniciativa em caso de espécie normativa que exige
competência privativa do chefe do Executivo (e assim não se dá), conforme
indagação proposta na introdução desse trabalho.
Alexandre de
Moraes (2010, p. 658) em sua doutrina apresenta questionamento de idêntico
teor, ao que responde pela impossibilidade de convalidação do vício, ainda que
o projeto aprovado pelo Congresso tenha sido sancionado pelo presidente da
República. Consubstancia seu posicionamento na superação da Súmula nº 5 do
Supremo Tribunal Federal[1], abandonada em 1974 e em
jurisprudência[2] do mesmo órgão, que tem como
principal função a guarda da Constituição. Seu posicionamento encontra eco na
doutrina de Pedro Lenza (2007, p. 372), de Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino
(2007, p. 469), de Saul Tourinho Leal (2010, p. 26), de Matheus Rocha Avelar
(2009, p.289)[3], de Charles Froelich e Elia Hammes
(2009, p. 208).
Ressalte-se,
entretanto, que nenhum dos juristas acima mencionados analisou a questão sob o
enfoque do princípio da efetividade das normas constitucionais. Assim, Kildare
Gonçalves (2006, p. 800-802) adotou um posicionamento mais ponderado ao
apresentar a questão como polêmica, citando Manoel Gonçalves Ferreira Filho e
Marcelo Caetano na condição de “adeptos” da impossibilidade de convalidação do
vício de iniciativa pela sanção, e em contrapartida, discorrer também sobre o
entendimento contrário defendido pelo próprio José Afonso da Silva, por
Themístocles Cavalcanti e Seabra Fagundes e por Menelick de Carvalho Netto.
Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, por sua parte, alega a tese da não convalidação com
base na doutrina italiana afirmando que um ato complexo não é válido se não são
igualmente válidos os elementos que concorrem à sua formação. Assim também,
Marcelo Caetano anota a característica da irrenunciabilidade do direito de
iniciativa exclusiva do presidente da República e completa que tal previsão
constitucional se deu não apenas por motivos jurídicos, mas também políticos em
defesa da independência dos três Poderes, princípio constitucional insculpido
no artigo 2º da CF/88.
A omissão
legislativa oriunda do poder competente para legislar, no caso o Executivo, é
suprida pela atuação do Legislativo e conta com a aprovação do poder omisso
quando sanciona o ato, dando efetividade às determinações/direitos previstos na
Constituição, assim defendem José Afonso da Silva e Menelick de Carvalho Netto.
Sérgio Antônio
Ferrari Filho ressalta que a exclusividade na iniciativa de determinadas
matérias legislativas se deve não ao movimento do Constitucionalismo, no qual a
iniciativa legislativa era exclusiva do Poder Legislativo, mas a tendências
flexibilizadoras ditatoriais, em que prepondera o Poder Executivo, confirmadas
pelas Constituições de 1937 e de 1967. Pondera ainda que a preservação da
autonomia dos Poderes Executivo e Judiciário e da contenção das despesas
públicas que poderiam justificar o reconhecimento da inconstitucionalidade
formal nem sempre se verificam quando o Legislativo tenta suprir-lhes a
omissão. Considera a iniciativa privativa não como princípio fundamental, mas
como mera norma-disposição. Sublinha o princípio da unicidade insculpido na
Constituição e a ausência de hierarquia entre as normas constitucionais, mas
demonstra também a preocupação do legislador constituinte em garantir a
efetividade da própria Constituição (princípio da efetividade ou da “máxima
eficácia possível”). Aponta que a omissão do Chefe do Executivo, nesse caso,
também está eivada de inconstitucionalidade ao obstar a efetivação da
Constituição.
Ante a colisão
de interesses: de um lado a proteção do princípio da separação dos Poderes que
refuta a inobservância da reserva de iniciativa no processo legislativo e a
consequente inconstitucionalidade formal, mas que referenda um ato igualmente
inconstitucional (a omissão da autoridade competente), e a efetivação do texto
constitucional suprida pela ação do Legislativo e posterior sanção do Executivo
em respeito ao princípio da efetividade, deve-se optar pelo caminho que
apresente maior relevância prática, visto que a Constituição deve servir ao
povo e não atuar contra esse, pois ao privilegiar a inércia do Executivo, num
círculo vicioso, desrespeita o próprio princípio da independência e harmonia
entre os Poderes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AVELAR,
Matheus Rocha. Manual de Direito
Constitucional. 5ª ed., Curitiba: Juruá, 2009.
CARVALHO,
Kildare Gonçalves. Direito
Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição e Direito Constitucional
Positivo. 12ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
FROEHLICH, Charles Andrade. HAMMES, Elia Denise. Manual do Controle Concentrado de Constitucionalidade. 1ª ed., Curitiba:
Juruá, 2009.
LEAL,
Saul Tourinho. Controle de
Constitucionalidade Moderno. 1ª ed., Niterói: Impetus, 2010.
LENZA,
Pedro. Direito Constitucional
Esquematizado. 11ª ed., São Paulo: Método, 2007.
MORAES,
Alexandre de. Direito Constitucional.
24ª ed., São Paulo: Atlas, 2009.
PAULO, Vicente & ALEXANDRINO, Marcelo. Direito
Constitucional Descomplicado. 1ª Ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
FERRARI
FILHO, Sérgio Antônio. A iniciativa
privativa no Processo Legislativo diante do Princípio interpretativo da
efetividade da Constituição. Disponível em: http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2001/revdireito2001A/estudo
_iniciatpriv.pdf. Acesso em 11 jan. 2010. Material da 5ª aula da disciplina
Teoria da Organização do Estado e dos Poderes do Estado, ministrada no Curso de
Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito do Estado – Universidad
Anhanguera-Uniderp|Rede LFG, 2011.
[1] O Supremo, apesar de
alterar a Súmula nº 5, adotando a tese da não convalidação, como já mencionado
acima, ao julgar a ADIn nº 266-0-RJ, em 1993, voltou a aplicá-la, revelando que
a questão realmente não é pacífica.
[2] ADIn nº 1.201-1/RO – Rel. Min.
Moreira Alves, Diário da Jusitça,
Seção 1, 9 jun. 1995, p. 17.227.
[3] ADIn nº 2.079 – TP – Rel. Min.
Maurício Corrêa – DJU 31.03.2000, p.38.
[i] Lilla de Macedo Lima. Advogada,
professora de Direito Constitucional, Direito das Sucessões e Direito das
Coisas na Universidade de Rio Verde – Campus Caiapônia. Especialista em Direito
do Estado e em Docência no Ensino Superior.